Hora Certa em Mosqueiro

sábado, 11 de setembro de 2010

GOSTOS E SABORES


José Varella

http://josevarellapereira.vilabol.uol.com.br/Cahier04.ht

  1. Gostos e sabores.

O mundo amazônico é feito de complexidade e paradoxo. Sua inata antropofagia devora certezas cartesianas e voluntarismos positivistas que tentam domesticar a região equinocial. Seus “desbravadores”, que não têm tempo a perder, perdem a vida sem jamais conquistar o “paraíso” que ambicionavam, engolidos por uma geografia anfíbia e canibal.

As águas grandes inventam caminhos e se perdem por paragens ermas onde reina o silêncio dos princípios do mundo. Lá, nos Centros! Onde o verde desfalece sob o vento ardente debaixo do sol lavrado, só e só p’ra renascer do ventre das chuvas do dilúvio da temporada. Este charme selvagem que grela dos tesos de camutins pela arte antiga dos pajés, sempre viva na linguagem paleo-surrealista desta gente. Sentimento de pertencimento ao chão da terra e à ancestralidade profunda, na redundância da domesticação do mistério. Na insularidade apenas mitigada pelo remanso do estuário, aonde vêm chegar restos do naufrágio duma civilização perdida, apenas relembrada numa história endógena na qual o real e o imaginário não têm fronteiras.

Comei e bebei...



A Mulher Tapuia”, o pintor Albert Eckhout, artista holandês que visitou o Brasil na primeira metade do século XVII, representa o canibalismo. Crédito: Divulgação - Museu Nacional da Dinamarca

O pintor holandês provavelmente não assistiu a nenhuma cena explícita de canibalismo. Mesmo assim, a imaginação não faltou para criar preconceitos. Em geral, os tapuias não eram praticantes, mas sim vítimas do costume dos seus inimigos tupinambás em comer carne humana: nunca porém para se alimentar, mas por afincada crença religiosa. A antropofagia dos Kalina ou Galibi implica um fenômeno de bilingüismo de grupos como os nuaruaques, fruto de casamentos cruzados entre conquistadores caribes e famílias aruaque cativas. Os caribes praticavam o rapto de mulheres valiosas pelo conhecimento técnico. Fato que estava ao cerne da antropofagia dos guerreiros invejados como manifestação mágico-religiosa. Face à pressão dos Kalina, os Aruak migraram em massa das Antilhas para a Terra-Firme através da ilha de Trinidad; diante do delta do Orenoco. Donde se explica em parte o aparecimento do povo, vindo através das Guianas, que habitou a ilha do Marajó no passado pré-colombiano. No “front” do Pará essa gente invejada da pré-histórica teve ainda que lutar contra outros antropófagos, famosos pela guerra, que foram os Tupinambás.

Os guerreiros vencidos eram devorados na intenção de transmitir aos comensais a coragem invejada. O canibal experimentava sentimento de inferioridade em relação à sua vítima: a vingança consiste em comer o herói para igualar-se a ele. Mas, a presa era a mulher araque com suas crianças levados como troféus de guerra. No cativeiro, elas conviviam com mulheres caribes e terminavam por ensinar-lhes o savoir faire aruaque. Por isto, houve quem considerasse os aruaques como os gregos do Novo Mundo. Cada família mista criava seus filhos segundo costumes e língua das respectivas mães. Terminava tudo falando as diferentes línguas da aldeia. Podendo-se observar nos dialetos do Marajó essa mistura que confundiu a Ferreira Pena, e que a argúcia de Nimuendaju e Expedito Arnaud puderam identificar no caso dos Aruãs, como aruaques e não galibi.

A mulher aruaque adquiria ascendência sobre os homens da aldeia, sobretudo, pelo prestígio do saber do inimigo. Verdadeira sabedoria tapuia, notável inclusive entre povos Jê, no alto Xingu. Fato de grande valia na resistência cultural desses povos até os nossos dias, em diversas situações de aculturação, incluindo a convivência das mulheres tapuias com tupis, africanos e portugueses.

Em Marajó, topônimos e falares podem revelar antigos dialetos nuaruaques assimilados na Língua Geral ou Nheengatu. O prato típico da culinária marajoara, canhapira; pode esconder um caso de hibridismo tupi-aruaque quando se lê, adiante, o aruaque kaniri (comer, ou aquele que come) e o tupi pira (peixe), donde a conhecida “comida feita de peixe” originalmente passou a adicionar sumo de tucumã. Até evoluir, na gastronomia marajoara, como prato à base de tucumãs com carne de porco.

Termo que excede aos verdadeiros Caribes ribeirinhos, e se associa ao aruaque kaniriphuna: o inimigo hereditário (os Caribes da costa e das ilhas), “comedor” de gente. A área das Guianas (cf. Keymis, 1596), entre o Amazonas e Orenoco, apresentava as seguintes etnias: Coonaracki (nuaruaque?), Araos, Pararweas, Morowanas, Maworia, etc. O inglês Keymis associado a Walter Raleigh, trata todas estas tribos como Charibes ou Caribes. Chama à região de Caribana, Harcourt (1613) descreve a região como de Caribes. Grenand pensa que se trata de um adjetivo genérico para “Índios hostiles”. Com isto se quer demonstrar como o olhar do colonizador tinha dificuldade em distinguir a realidade neotropical: e que, a partir dessa ótica muitas vezes equivocada, se construiu um formidável edifício cujos alicerces

A palavra karib entrou nas línguas européias com o sentido de canibal. repousam sobre um pântano de ignorância e preconceitos. Tidos e havidos como a voz da “verdade”, seja pela antiguidade, ou pela a fama de quem deu a primeira notícia.

A evolução de palavras arcaicas ganha conotação diversa da original. Os Palikur do Oiapoque chamam a seus vizinhos Karipna não mais como “inimigos”, mas vagamente em tom pejorativo de “gente estrangeira”. Explicam que assim fazem porque os Caripunas são “mestiços brasileiros”, quase caboclos, portanto. A mesma palavra está no falar dos caribes, onde os Wayanas chamam Kalipono a seus antigos inimigos do passado, quando se encontravam em guerra pelo interior da Guiana. Os Kalina no Suriname são chamados Carib e na Guiana francesa Galibi, denominações provenientes das línguas Arawak (aruaque).

A organização social básica dessas gentes é o “Clã”, em torno de uma família comum. Que nas tribos de Marajó e Guianas (Amapá inclusive) tiveram característica notável. Pelo sistema clânico os aruaques formavam verdadeiras confederações de “parentes”. O termo “parente” tem um peso coloquial intenso nas relações humanas entre os caboclos do Marajó. Foi assim que os nheengaíbas, em Marajó, enfrentaram a invasão dos tupinambás e puderam resistir aos portugueses durante muito tempo.

Ao tempo da fundação de Belém do Pará, o francês Jean Moquet (1616) encontrou o baixo Oiapoque habitado pelos Caripous do cacique Anakayouri, célebre chefe aruaque que conduziu uma grande migração de índios das Antilhas para o continente, através da ilha de Trinidad. Os viajantes dessa mesma época (Keymis, 1596; Harcourt, 1608; Jesse de Forest, 1623) encontram os índios Oyapoc de Yoyo, Maraouns e Arawak “confederados sob as ordens do dito Anakayouri contra os Galibi, inimigo comum, como Caripus”... E assim a velha palavra rebrota num novo cenário.

Autores franceses chamam de Caripouns a todos aqueles refugiados da colônia portuguesa na desembocadura do rio Amazonas. Isto é, Marajó e Amapá. Grenand observando o nome de plantas coletadas entre esses Garipons achou que eles falavam uma língua tupi, provavelmente o Nheengatu. Mas, a Língua Geral (como língua franca) não explica a origem das tribos, uma vez que ela foi imposta indiferentemente através da catequese e expansão da colônia do Grão-Pará a diversas etnias nas chamadas reduções. Em Barcarena, Pará; acha-se a praia do Caripi, e mais uma vez se vê em língua tupi a assimilação aruaque que os contatos belicosos ou não fomentavam: é dizer “caminho” dos Nuaruaques. Na margem oposta, à entrada do rio Marajó, está o farol Itaguari sobre o rochedo que demarcava a costa-fronteira e foi durante algum tempo nome do atual município de Ponta de Pedras. Pode ser outro exemplo de empréstimo lingüístico de área de contato, se a dita “ponta de pedra” (ita, pedra em tupi) significava a entrada do rio (ári, rio em aruaque) daquela gente (way/gua, aruaque). O mesmo pode ser dito sobre o Igarapé Grande ou Paracauari (do tupi pará, mar; e do aruaque gua; a gente Nuaruaque; e ári; rio), cujo entendimento poderia ser “rio do povo do mar” (povoadores de Marajó vindos através da costa marítima do Amapá).

O administrador Lemoyne (1753) informou ao Ministério da Marinha da França que os tais Garipons eram parte de uma população aculturada. Onde se encontravam entre os refugiados, carpinteiros, tecelãos, sapateiros e operários em geral. Os Caripouns, então eram “gente de etnia indefinida”. Sem dúvida, refugiados da Ilha do Marajó durante as tensões das demarcações da fronteira do Tratado de Madri de 1750 que culminaram com a expulsão dos Jesuítas e após este acontecimento mais ainda. Catecúmenos da central de amansamento de índios de Murtigura (Vila do Conde) outrora. Concluindo o oficial francês que aqueles índios “só se transformaram em Caripouns quando chegaram na baía do Oiapoque”. Antes da partida, seriam marajoaras nesta mesma rota de idas e voltas sem fim de uma mesma região, que a geopolítica ocidental fragmentou e dividiu conforme o interesse das suas metrópoles.

Aqui vemos, mais uma vez, o problema do sociólogo James Casey, já citado: antropólogos vêem freqüentemente a árvore, mas não a floresta... E historiadores descrevem grandes cenários e esquecem que os principais personagens desta vida necessitam de inúmeros coadjuvantes...

Este caminho das mais antigas relações entre o Pará, as Guianas e o Caribe. Caminho de gente à margem da própria história na terra dos antepassados. Esses nheengaíbas ou caripunas, conforme o olhar alienígena, deram começo a várias desordens: desde o simples contrabando até o crime organizado, através de uns e outros, que vão se desgarrando nas malhas da “civilização”... Foram também no passado guerrilheiros cabanos, sem dúvida nenhuma.

Grenand, que tem estudado as etnias do Oiapoque, conclui por dizer: “uma alteração da antiga palavra aruaque (aqui sem dúvida palikur) serviu uma vez mais de batismo, posto que do lado português são chamados Tapuias, seu estrito equivalente semântico nas línguas tupis”. Termo empregado para designar a esses emigrados do Marajó (Devilly, 1850; Reclus, 1895).

Por fim, os próprios refugiados marajoaras do Oiapoque adotaram o nome caripoun/caripuna como autodenominação. Os Caripunas são os exilados do Diretório de Pombal no Oiapoque reforçados posteriormente por outra migração na derrota da Cabanagem (1836/1840). Razão pela qual é correta a tese de Ciro Flamarion Cardoso considerando que a faixa que vai do arquipélago do Marajó até a ilha de Trinidad, pelas Guianas, constitui uma mesma área cultural.

A saga dos Caripunas descreve o caminho das tapouilles (canoas à vela e modernamente barcos de contrabando) e a rota da imigração clandestina. Conforme Nimuendaju (1926), os Caripunas guardam noção de sua própria história e informam ter falado, noutro tempo, o Nheengatu ou Língua Geral: o que quer dizer, mais uma vez, que a “tupinização” se efetuou em Marajó com a colonização portuguesa através da substituição da babel nheengaíba pela unificação lingüística imposta pela catequese. Assim como, por sua vez, o Diretório impôs a língua portuguesa em substituição ao Nheengatu. Hoje, os Caripunas tendo experimentado adaptações e assimilações extremas, falam correntemente o crioulo franco-guianense.

Outro problema interessante da área geocultural guianense, da qual o Marajó faz parte; reside na palavra-chave Parigoto. Fontes dos séculos XVII e XVIII registram esta palavra nas línguas veiculares desde a foz do Amazonas até o rio Suriname. Aqui se acha uma província ou distrito de nome Pará. O povo Palikur possue clã de nome Parauyune. Em caribe do litoral, parigoto ou em Palikur parauyune, têm a mesma significação: “gente do mar”. No Brasil, Pará, em Nheengatu, quer dizer “mar”... Falam por diversos modos, de um povo que viaja ao longo do oceano, por suposto imigrantes indígenas vindos das Antilhas. Onde não faltariam aportações normandas, bretãs e lusíadas através de trânsfugas e deportados.


Pela primeira vez, Keymis (1596) fala de Pararweas / Paragoto que se achavam na foz do rio Araguari. Documentação francesa (anônima, segundo Grenand), de 1686, encontra Paracostes no baixo Maroni, geralmente aliados aos Galibi. Porém, Keymis informa que esse povo compartilhava com os Aruãs e os Aricari uma mesma língua. E aí se pode pensar, novamente, no fenômeno de bilingüismo daquelas famílias mistas aruaque-caribenhas surgidas da antropofagia dos Kalinas.

Índios nheengaíbas conviviam em paz com colonos holandeses, abastecendo-lhes de peixe-boi e demais “gados do rio”. Os Mercedários construíram o primeiro engenho de açúcar, na foz do rio Arari. Já em 1627, os frades do Carmo tinham engenho no rio Bujaru e os jesuítas fundaram engenho no rio Moju, em 1669. Então, a escravidão de negros e tapuios tornou-se indispensável à ocupação econômica da Amazônia.

Cerca de 1653, quando Vieira chegou ao Pará, a mão-de-obra para os trabalhos da colônia e os arcos da guerra dependia praticamente de índios escravos fornecidas pelas aldeias da Ilha do Sol ou dos Tupinambás (Colares), Cintra (Maracanã), Benfica, Murtigura (Vila do Conde), Araticum (Oeiras do Pará) e Arucaru (Portel). Em mapa do Rio Pará, nota-se que a banda direita era de fato posse portuguesa, porém a Costa-Fronteira, na margem esquerda; e a foz do Amazonas constituía província Nheengaíba em comércio franco com os chamados Hereges (colonos protestantes súditos dos Países-Baixos, Reino Unido e França).


Engenho Real

Os holandeses chegam ao Amazonas como amigos e compadres dos índios do Amapá e Marajó. Comerciavam peixe-boi, tartarugas, urucu, salsaparrilha, em troca de facas, tecidos, contas de vidro. Com isto foram tomando pé e chegaram até o Tapajós sem encontrar oposição, mas ao contrário com as boas-vindas dos nativos. Isto, desde 1599 até expulsão final cerca de 1646.

A conquista dos rios Pará e Amazonas está presa à história da cana-de-açúcar na América tropical. Basta lembrar que foi o rompimento do comércio entre a Holanda e Portugal – baseado no açúcar do Brasil e na escravatura africana –, causado pela cumulação do trono lusitano pelo monarca espanhol. O historiador Laet diz que os holandeses chegaram na Amazônia antes dos portugueses, pelo ano de 1598. Antes de ambos, os franceses haviam percorrido estes rios cerca de 1583, comerciando com os índios. O governador do Maranhão Berredo, segundo o historiador Ernesto Cruz, relata que os estrangeiros possuíam “em várias ilhas de sua grande boca, muitas Feitorias de diferentes gêneros que se amparavam de algumas Casas fortes”.

Os índios do Marajó e Amapá conviviam em boa paz com os holandeses, abastando-lhes navios de peixe-boi. Logo da fundação de Belém, Francisco Caldeira de Castelo Branco escreveu ao rei, no dia 12 de abril de 1616, relatando a situação. E o rei de Castela, com base nessa carta, mandou instrução ao Governador Geral do Brasil, na Bahia; autorizando ajuda ao Pará. E notando a diferença da Amazônia com as demais terras do Brasil, dizia ele estar ela habitada de muita gente capaz de “se plantarem canas e se fazerem engenhos”.

André Pereira na sua narrativa sobre o Pará conta que flamengos tinham feitorias protegidas por dois “fortins de madeira” (paliçadas) no Cabo do Norte, na costa amapaense, com 300 colonos e dois engenhos de açúcar. No regimento de 14 de abril de 1655 do rei dom João IV mandado a André Vidal de Negreiros, Governador do Estado do Maranhão e Grão-Pará, ficou claro que a sorte da colônia portuguesa era vista como possibilidade “para engenhos de açúcar e criações de gado vacum”. Evidentemente, era o interesse da metrópole que predominava em tal decisão: porém a pesca estava implícita como base de sustentabilidade de ambos empreendimentos...

O jesuíta Cristóvão de Acuña, na relação da viagem de Pedro Teixeira ao Equador (1637-1639), conforme Ernesto Cruz, na sua “História do Pará” recomendava: “As melhores [colheitas], que a meu ver, se deveriam empreender neste Rio [Amazonas], são as de açúcar, que é o quarto gênero que, como o mais nobre, mais proveitoso, mais seguro e de maiores rendimentos para a Coroa Real, e do qual há tempos tanto diminuiu o tráfico no Brasil, mais se deveria tomar a peito e procurar desde logo instalar muitos engenhos, que em breve tempo restaurassem as perdas daquela costa [o Nordeste]: pois a terra para a cana doce é a mais famosa que há em todo o Brasil...”.

Foi na volta de Pedro Teixeira na célebre viagem a Quito, com os seus mil e tantos remadores tupinambás, que vieram os frades das Mercês se instalar no Pará. Terminando esta ordem religiosa por construir o primeiro engenho de açúcar na Ilha do Marajó, na ilha de Sant’Ana, foz do rio Arari, no ano de 1696.

Historiadores como Roberto Simonsen apontam à produção de açúcar no Pará pelos holandeses como causa da conquista da Amazônia pela União Ibérica. Entretanto, pode-se pensar que a luta geopolítica pela entrada do rio com acesso à prata do Peru teve o açúcar como sustento dessa conquista: quer dizer, a cana de açúcar foi vista como meio de ocupação. Não seu principal objetivo. Que foi antes compensação da perda do comércio do açúcar fabricado no Nordeste, motivo da competição. Quer dizer, foi um motivo político (a incompatibilidade histórica entre Holanda e Espanha) que gerou o fato econômico. Sendo as minas do Peru que as viagens de Orellana (1542) – guardadas a sete chaves – e de Pedro Teixeira (1637-1639) demonstravam.

A ocupação militar buscou produto compatível para gerar renda de sustentação dos fortes e da população que iam, pouco a pouco, balizando a região. Com esta preocupação a Câmara de Belém solicitou ao rei remessa de escravos africanos para os canaviais. O monarca, então, ordenou que se dividisse igualmente entre o Maranhão e o Pará cada lote de escravos africanos que chegasse ao porto de São Luís, a serem distribuídos “pelos Senhores de Engenho e pelos lavradores”.

A Coroa mandava o governador Antônio d’Albuquerque Coelho de Carvalho, condicionar que os escravos da Guiné, independente da propriedade dos seus senhores, fossem obrigados “a lavrar cana e levá-la a fabricar nos Engenhos” (Livro Grosso do Maranhão, vol. 66, 1ª parte, p. 190, carta régia de 10/09/1699). Nos inícios da colonização, em 1627, já os frades do Carmo construíram engenho no rio Bujaru. Em 1669, os jesuítas fizeram o mesmo no rio Moju. A escravidão de negros e índios tornou-se indispensável nessa indústria. Cerca de 1653, quando Vieira chegou ao Pará, toda a mão-de-obra e os arcos da guerra dependia praticamente de índios cativos. Segundo Ernesto Cruz, eram nove aldeias de suprimento de trabalhadores indígenas, entre elas a Ilha do Sol ou dos Tupinambás (Colares), Sintra (Maracanã), Benfica, Murtigura (Vila do Conde), Araticum (Oeiras do Pará) e Aricaru (Portel). Mas não podemos esquecer de Cametá, Gebiré (Barcarena), Muribira (Mosqueiro, lugar de moqueio, defumação de peixes), Joanes e a aldeia dos Maruaná (Pesqueiro Real)...

Outro traço característico dos aruaques foi dado à difusão que eles fizeram da planta da cuieira, de grande utilidade doméstica na região amazônica. Com o fruto dessa planta faziam baldes para carregar líquidos e cuias onde serviam a sopa de amido de mandioca (tapioca) com caldo extraído do mesmo tubérculo (tucupi) ou peixe, que veio a se tornar na famosa iguaria da gastronomia paraense (tacacá), melhorada com ingredientes da culinária africana e portuguesa, como o camarão, o alho e ervas regionais como o jambu e a chicória.

Povos de cultura aruaque ocuparam as ilhas do Amazonas e Pará vindos através do Amapá, nas Guianas. Eles habitaram, provavelmente, ambas as margens do rio Pará antes dos tupinambás os expulsar para as Ilhas. Talvez a Baixada Maranhense (onde se encontram vestígios de aldeia sobre palafitas) até o Ceará fosse antiga ocupação nheengaíba. A atual cidade de Alcântara-MA teve nome de Tapuy-Tapera (tapera tapuia), indicativa das ruínas de “inimigos” dos tupis. Tapuias eram principalmente timbiras, kanelas (povos de grupo Jê) saídos do sertão para o litoral, porém o termo genérico para os não-tupis incluía naturalmente os grupos ribeirinhos aruaques. Mas, o “habitat” de mangal é, sobretudo espaço geocultural nheengaíba (aruaque).

Parece evidente que o Nordeste foi zona de atrito de migrações tupinambás não só frente a populações de etnia Jê (que foram empurrados para os sertões do Tocantins), como também diante de ribeirinhos Aruak. Que teriam refluído para as Ilhas, donde, anteriormente, tinham alcançado a Terra-Firme. Esta seria talvez a causa primordial da rivalidade ancestral entre populações costeiras do rio Pará, que, por certo, ainda tem conseqüência nas populações tradicionais remanescente até os dias de hoje.


Vieira escreveu: “Para um homem ter o pão da terra (farinha de mandioca), há de ter roça, e para comer carne, há de ter caçador, e, para comer peixe, pescador, e, para vestir roupa lavada, lavadeira, e, para ir à missa ou a qualquer parte, canoa e remeiros”.

Esta particularidade genérica da América tropical se tornava dramática debaixo do equador. Criou uma quase casta de “brancos” equatoriais, acostumada a mandar e a não fazer nada de útil à coletividade, mas sempre queixosa da falta de favores do reino e da preguiça e má vontade dos subordinados. Naturalmente tudo o que se criou e conservou no período, figura na historiografia regional como feito pelos tais senhores que mandaram ou consentiram fazer. Logo, além das terras (o espaço) também se apropriaram eles da história (o tempo). E este pesadíssimo carma1 haveria de perseverar até os nossos dias, quando ainda se ouve ou lê notícia acerca de trabalho escravo na região. Certamente, este não é um mal apenas nosso ou estigma neocolonial exclusivo: tem origem na própria história mundial. E somente ações globais a poderiam remediar. As transmigrações transoceânicas falam melhor deste drama antigo da humanidade, que a Diáspora hebréia foi talvez o ápice e a colossal emigração de paises pobres a paises ricos continua sendo.

Para funcionamento desta estrutura de dominação sócio-econômica, a primeira coisa a fazer era gerar a dependência da “classe inferior”: apaziguando-se a consciência “cristã” pela crença de que Deus fez o mundo assim desde os primeiros dias... Então, sob falsa caridade da “salvação das almas” extraiam os selvagens das suas superstições nas distâncias dos altos-rios à força, pelas Tropas de Resgate e os Descimentos forçados. Vila do Conde (antiga aldeia de Murtigura) era verdadeiro centro de triagem e treinamento onde o índio brabo aprendia ofícios e saía proto-caboclo em vias de proletarização. Não por acaso, por esses centros – Acará, Moju, Barcarena, Beja, Oeiras, Portel, Muaná e Marajó-Açu – deu-se o fermento da revolta cujo estampido mor foi a Cabanagem, com seus 40 mil mortos entre 1835-1840, em população de cem mil almas.

A indústria do açúcar e aguardente sempre exigente de terras, derrubadas de floresta e abundantes escravos, acrescentava a necessidade doméstica dos habitantes (civilizados) do Pará. E por isto, a Câmara da capitania não cessava a litania da demanda de mais escravos. Queixando-se ademais da falta de “escravos índios e negros de Angola e Guiné que estavam sendo vendidos por preços muito altos”.

Ou seja, o regime colonial caminhava inexoravelmente para um beco sem saída. O rei barganhava, cobrando dos súditos maior empenho para construir e manter fortificações militares em defesa da posse. Por via dessa queda de braço, entre colônia e metrópole, o povaréu saia mais prejudicado. E os senhores de engenho, em busca de maior rendimento pecuniário, “aumentavam a produção de aguardente de preço mais alto e elevado lucro, em detrimento da produção e exportação de açúcar tarifado”. O consumo interno era proporcional ao aumento do alcoolismo, naturalmente a cachaça servia de ópio às ditas classes inferiores e compensava a classe alta da avareza metropolitana no oligopólio do açúcar. Não há de duvidar que o tradicional contrabando do Extremo-Norte também tivesse começos por aí...


Sobre a cegueira amazônica

gado foi Francisco Rodrigues Pereira: o lugar em que a situou foi logo à boca do rio para a direita no Sítio que chamam Amanegituba defronte da fazenda de Santa Ana dos Religiosos das Mercês; situou aqui porque receava entrar pelo centro onde, informava um dos companheiros, que havia gentio bravo e homens foragidos (frisei) [índios Aruã, desertores e escravos refugiados]; vendo, porém, que depois tanto melhores eram os pastos e tanto mais abundantes quanto mais se chegava para o centro, situou-se mais acima em algumas 5, ou 6 paragens, como a Cachoeira, o Pau Grande, Santa Rita, Curral de Meias, São Joaquim e o Lago Pata. Seguiram-se à sua imitação os Padres das Mercês, os Religiosos do Carmo, Jesuítas e os Seculares [civis, sem filiação a nenhuma ordem religiosa].

Sete foram as fazendas de gado que na Ilha tiveram os Jesuítas: 4 no Arari e três no Marajó-Guaçu; das 7 fazendas considerarei as que tinham no Arari; em primeiro lugar, a saber, a primeira rio acima, é a fazenda de Nossa Senhora dos Remédios, em que foi contemplado o Mestre de Campo José Miguel Aires, hoje de seu filho Antonio Miguel Aires; a 2ª, no Igarapé São José, em que foi contemplado o defunto José Correia de Lacerda; a 3ª a do Menino Jesus, no rio Mari, à esquerda, em que foi contemplado o Sargento-Mor da Praça, João Baptista de Oliveira, hoje de seu genro, o Alferes Antônio José Lima; 4ª, a fazenda da boca do Lago Santo Inácio em que foi contemplado o Sargento-Mor da Cidade Manuel José Henriques de Lima, hoje de seu genro Sargento-Mor de auxiliares Carlos Gemaque: além destas 4, farei menção: dos dois retiros como chamavam, isto é, duas fazendas de beneficiar gado: uma nas cabeceiras do Lago Nanatuba, em que foi contemplado o Coronel Manuel Joaquim Pereira de Sousa Feio, e outra, nas cabeceiras do rio Anajás, que deságua no Arari, contemplação do Sargento-mor José Pedro da Costa Souto Maior. Quanto as três do Marajó-guaçu, na de São Brás contemplou João Falcato da Silva: nade São Francisco o Sargento-Mor Domingos Pereira de Moais [erro do texto tipográfico, leia-se Moraes]; na do Rosário o Alferes Francisco da Costa Almeida da Silva, hoje de sua mestra Dona Ana Felícia de Queirós, que já acima disse, que casou segunda vez: Não falo da fazenda de Santa Ana, entre as que possuem na Ilha os Religiosos das Mercês porque só consta de olarias, roças e não tem gado: acima do rio Arari um bom espaço para a direita tem a fazenda de gado de São Jerônimo; seguem-se adiante do mesmo rio a de São João, e de Nossa Senhora das Mercês, que é fazenda grande: antes do Lago, para o lado esquerdo, a de São Pedro Nolasco, e no mesmo Lago a fazenda grande de São Miguel. Nas cabeceiras do rio Guaiapi, que desemboca no Arari a de São José: no Rio Paraucauari [confrontar grafia anterior, Paracauari; a terminação “ári” é típica das línguas de tronco Arwak, com a significação de rio], rio acima, à direita as de 2 de São Lourenço, e Santo André; mais dois retiros, o de Santa Ana, e o outro do Lago de Guajará: estas são as que existem porque, para as fazerem maiores, incorporam com elas as terras das 7 que demoliram; a saber, a que herdaram de Manuel Alves Rosa, a do Cururu, a de Santa Maria do Socorro, a do Menino Jesus, a de Santo Antônio, a das Almas, e a da Conceição da banda e São Pedro Nolasco: a que tinham no Murutucu já a venderam a Custódio da Silva.

Os que menos fazendas tem na Ilha são os Carmelitas: das 5, que possuíam, a fazenda da Assunção no rio chamado Jutuba, e outra perto desta chamada Atuxiá; a que tinham com o nome de Santa Maria já a venderam.


O Pesqueiro Real

A praia do Pesqueiro, em Soure (antiga aldeia dos Maruanás, no português arcaico Maruanazes) lembra a existência do Pesqueiro Real. Era estabelecimento de trabalho obrigatório dos índios e propriedade da Coroa. O peixe depois de pescado era tratado por índios e índias e posto a moquear (técnica indígena de conservação da carne e do peixe por defumação, sem emprego de sal). O sal sendo raro na colônia e monopólio real exigia o uso generalizado do moquém.

Empilhado em arrobas (pesando 15 quilos) o peixe defumado havia valor de moeda para pagamento de soldados, funcionários e padres. A ilha do Mosqueiro, perto de Belém, foi um desses pesqueiros e lugar de moqueio (pelo que teria se tornado em “Mosqueiro”). O índio, portanto estava na base econômica da colônia, razão pela qual viu-se ele sempre ao centro de muitas disputas entre colonos e missionários.

Serafim Leite informa que, cerca de 1693, cuidando da colonização da ilha “nela coutou El-Rei um lugar, que hoje se chama Pesqueiro, onde é contínua a pesca de tainhas. Pescam-se, secam-se e a cada 15 dias vêm para a cidade do Pará 30 a 40 mil. E para isso não precisam os pescadores de mudar de sítio”.

Da fauna marajoara comida pelos séculos


“Nadam nos rios infinitos peixes-bois, e pirarucus, pirauíbas (sic), arauanas [aruanãs], dourados, pescadas, mandubés, traíras, jejeis [jejus], acarás, serapós [sarapós], tamoatás, pirapocus, piranhas, poraquês, aracus, corimatás, tucunarés, anojás [cachorrinho-do-padre], jacundás, fora os jabotins [jabutis], tracajás, muçuãs (são cágados) e tartarugas: nas outras classes de animais, como nas dos quadrupés (sic), tem infinitos morcegos; símios de muitas castas, tatus, tamanduás, preguiças, quatus [coatis], quatipurus, mucuras, raposas, onças, porcos bravos [queixada e caititu], e porcos de espinho [cuandu], antas, capioaras [capivaras], ouriços [o naturalista confunde, é o mesmo porco espinho], periás [preás; evidentemente Alexandre Ferreira louvou-se nas informações prestadas por Florentino Frade e seus subordinados, relevando-se portanto a grafia do ditado], cutias, pacas, veados, lontras, etc. Entre as aves são notáveis o tijoju [tuiuiú], jaburu, maguari, urubus pretos, urubus tingas [brancos], as corujas, mochos [jacurutus], corvos [equívoco, ou talvez se refere ao urubu jeréua, ou urubu belo], papagaios, araras, tucanos, araçaris, e de papo branco, e encarnados, as marandubeiras [maracanãs?], amanaciras [curicas?], tem-tem, guará, jacamins, anus, anumás, imensos gaviões, e pássaros pequenos, como beija-flores, tiepirangas (sic), cardeais, gaturamas, sanhadus [sanhaçus, ou suís], viúvas do Brasil (?), etc. Os anfíbios são os maiores; as cobras socuruju [sucuriju], jibóia, e o jacaré, a que acompanham outros lagartos, insetos, e vermes são a praga do País”.


700 almas do Pesqueiro Real a ver navios encantados

“Tais são as produções que pude observar de passagem pelo espaço de 23 dias que estivemos na Ilha Grande demorando-nos somente na Vila de Monforte, e na fazenda do Arari; consumiram-se em viagens enfadonhas pela costa, pelo rio Arari; daí volta os dias que restam para completar os que contamos desde 7 de Novembro, que embarcamos para Monforte até 10 de Dezembro que desembarcamos no Pará. Não deixei de notar a perspectiva da Vila de Monforte pelo seu exterior assim como a olhei pelo seu físico. Está situada sobre a costa e olha para o Canal da Cidade. Nele observa os navios, que demandam o porto do Pará, e da Vila expede o Comandante uma canoa de aviso ao General dando-lhe parte do Lugar em que descobre o navio, do seu tamanho, e o mais que pode observar: conta por todas 700 almas; dá aos índios precisos para o contrato de pesqueiro real que tem ao pé, onde se pescam infinitas tainhas, além das gorujubas [gurijubas], e mais peixes da Costa; os índios desta Vila são geralmente tidos por mui forçosos, industriosos, e trabalhadores, mas tem sido tantas as Portarias a tirar os índios da Vila para serviços particulares, tão penoso o trabalho do pesqueiro (frisei) que leva quase os homens capazes de trabalho da Vila, que não mentirei se disser, que nem tempo tem para do pesqueiro virem à Vila a levantar as suas choupanas caídas, para cuidarem das suas roças. As doenças não são muitas, nem as que há, passam pela maior parte de constipações, ainda pelas outras partes da Ilha reinam particularmente as doenças inflamatórias com as mais que resultam da atmosfera quente, e úmida diariamente: Os índios também não sabem nem alguém os ensina a corrigir de algum modo os defeitos naturais do clima, e ainda que o soubessem não podem agora cobrir as suas choupanas tão baixas, e rente com a terra úmida, e, no inverno, alagada, quanto mais levantar as choupanas, assoalhá-las, e prevenir por outros muitos modos a podridão. Estou em dizer, Sr. Exmo., que mais escravos ficaram os índios depois de declarada a sua liberdade do que antes da declaração (frisei) [Alexandre Ferreira se refere à lei de liberdade dos índios, com que o governo de Pombal justificou a dissolvição das missões e expulsão dos Jesuítas; dando origem à servidão do Diretório dos Índios]. O Sr. do índio (escravo, “negro da terra”) zelava na sua vida o seu dinheiro: hoje não importa que adoeça, que morra, que estoure de trabalho, porque nisso de ele trabalhar ganha o Contratador, o Diretor, o Juiz, etc.; de ele morrer ninguém perde, porque vem outro, e quem perde hoje um, amanhã outro é, Sua Majestade que nem conserva as Vilas, nem até ao presente experimenta as atitudes que há muito deviam ter resultado dos seus muitos altos desígnios.”


Ajuricaba, Guaiamã e o café do Brasil

Cerca de 1723, dois indígenas de etnias do grupo Aruak entraram para a história da resistência ao colonialismo. No Rio Negro, Ajuricaba, tuxaua dos Manaus, rebelou-se contra caçadores de escravos atacando-os. Foi acusado então de estar a serviço dos holandeses do Rupununi. Foi combatido por forças comandadas pelos capitães Belchior Mendes de Moraes e João Paes do Amaral. Derrotado, foi conduzido acorrentado ao Pará, mas durante tempestade aproveitou-se do descuido dos vigilantes e suicidou-se ao se atirar com as cadeias nas águas agitadas.

O estadista e abolicionista Joaquim Nabuco, ao estudar a questão da fronteira do Rio Branco com a Guiana britânica, negou a acusação que fizeram ao bravo Ajuricaba, herói do povo Baré. Pela mesma época, o cacique Guaiamã, dos Aruãs de Marajó e dos Mexianas; sofreu perseguição por parte das autoridades do Estado do Maranhão e Grão Pará. Foi aberta devassa (inquérito) formalizando acusação semelhante a que se fizera a Ajuricaba, da qual consta:

Que Guaiamã ou Guaiaman se tornou bandoleiro em parceria com traficantes de Caiena. É sabido que o governador francês daquela colônia, De Férrolles, incentivou o tráfico de escravos na possessão portuguesa visto que os regimentos da França proibiam a escravatura de índios estabelecidos nos seus domínios. O governador de Caiena, todavia, para realização de seus planos dependia de braços escravos, então se voltou ele para a conquista da região do Contestado do Amapá, entre o Oiapoque e o Araguari, com ambição de estender a colônia francesa até o Amazonas.

Não há que duvidar que o cacique marajoara – em vista da sucessão de acontecimentos de quase meio século desde o vilipendiado tratado de paz de 1659 – terminasse por concordar antes em sujeitar-se à soberania da França do que ao jugo dos súditos de Portugal. Assim, contrabandistas franceses aproveitavam para contratar Aruãs, tradicionais inimigos dos Tupinambás e seus senhores portugueses. Como se sabe, os índios do Marajó tinham justificadas mágoas das autoridades do Pará desde a guerra de 1623 – 1643, aumentada pela frustração da Paz de Mapuá e expulsão do padre Antônio Vieira e seus confrades. Guaiamã, conforme o geógrafo militar Armando Levy Cardoso, emprestou seu nome ao rio Guamá (que deveria ser dito rio de Guaiamã, como os velhos caboclos pronunciavam Guamã, ao se referirem ao rio).

A velha guerra entre índios de Marajó e tupinambás chegou até quase a metade do século XVIII. Cada lado se vingava do outro aprisionando inimigos para vendê-los como escravos: sendo que os tupinambás forneciam nheengaíbas ao mercado de Belém e os Aruãs abasteciam o mercado de Caiena. Aqui, estes últimos não só trocavam “peças” humanas por mercadoria comum, mas principalmente obtinham armas e munição a fim de sustentar a guerra antiga: o que, por certo, ia ao encontro dos planos de expansão da Guiana Francesa. A indisposição era recíproca. Por isto, o Tratado de Utrecht de 1713, estabeleceu o Contestado como território neutro entre as duas colônias, situação que se resolveu por negociação e arbitragem, em 1900. Não sem antes, tentativas de ocupação e conflito armado onde Veiga Cabral e seus comandados enfrentaram expedição militar francesa, com mortos e feridos, em ambos os lados.

Era notável o fato de que os valentes tupinambás, depois de anos de guerras e correrias com as tropas de resgate, estavam completamente esgotados. Não eram mais nem uma sombra do bon sauvage. Os Aruãs, todavia sempre ousados e astuciosos tinham lá a sua revanche e penetravam às ilhargas de Belém para atacar aldeias vizinhas, como a dos Murubiras, na ilha do Moqueio (Mosqueiro). Depois, com prisioneiros a bordo, peados sem dúvida, empreendiam longa viagem de retorno saindo pelo rio de Guaiamã, por onde vinham, canal de Carnapijó e meandros da Ilha do Marajó até a longínqua Guiana Francesa, contornando o Cabo do Norte. Lógico que a partir de Marajó os próprios tupinambás capturados e desarmados eram obrigados a prover a parte mais penosa da jornada.

Para dar termo à ousadia do cacique do Marajó, armou-se tropa de Guarda Costa sob comando do capitão João Paes do Amaral, o mesmo que foi mandado depois contra Ajuricaba. A ordem era prender vivo ou morto o Guaiamã, mais um certo soldado desertor paulista chamado Gonçalo e escravos refugiados. Aproveita-se a expedição para mandar localizar os marcos entre Castela e Portugal, da capitania do Cabo do Norte dada a Bento Maciel Parente ao tempo da União Ibérica. E que diziam estar no Mont d’Argent (por coincidência, o lugar onde o legendário Anakayuri teria assentado seu célebre cacicado do Oiapoque). Depois de uma dura jornada voltou o capitão sem grandes novidades. E Guaiamã, livre como um passarinho, estaria entre seus parentes da Paricuria ou então entre os Aruãs refugiados em Caiena.

Uma segunda tropa de Guarda Costa foi mandada procurar o cacique do Marajó e os demais indiciados sob mando do sargento-mor Francisco de Mello Palheta, homem-bom da vila da Vigia. Talvez de viagens como esta ficou conhecido “o furo do Palheta” a caminho do rio Anajás Grande para ir ao Cabo do Norte (Amapá), até Caiena. Também o comandante Palheta voltou de Caiena sem novas do cacique bandoleiro, mas com as primeiras plantas e sementes de café que vicejaram no Pará e foram formar cafezais no Rio de Janeiro e São Paulo. Graças às aventuras do cacique do Marajó.




1 A tradição metafísica do Oriente expandida ao Ocidente, sob diversas crenças e doutrinas religiosas, pretende que os indivíduos, em vidas pregressas, tornam-se devedores de suas más ações morais. Isto explicaria as diferenças sociais, inclusive. O sistema de casta Hindu se alimenta basicamente desta crença. Aqui não pretendo fazer apologia disto (que não creio, aliás). Mas, com uso da linguagem corrente, fazer referência a usos e costumes transmitidos à descendência ao longo das gerações, que em determinado momento histórico se torna um ônus aos portadores dessa herança. Seria mais apropriado considerar o Carma oriental uma “dívida ou uma crise histórica” (implicando possibilidades positivas até, no conceito chinês) coletiva sob aspecto sociológico do que qualquer natureza mística.

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